Um dia, Zaratustra, ele também como todos os alucinados pelo além, elevou sua ilusão para além do homem. Obra de um deus sofredor e atormentado, assim me pareceu então o mundo.
“O mundo me parecia um sonho, uma ficção de um deus, vapor colorido diante dos olhos de um ser divinamente descontente”.
Bem e mal, alegria e desgosto, eu e tu, tudo me parecia mais vapor colorido diante dos olhos criadores. O criador queria desviar de si mesmo o olhar e então criou o mundo.
(NIETSCHE, P. 35)
Assim falava Zaratustra, de Frierich Willhelm Nietzsche (1844-1900) é uma obra que retrata a busca de um super-homem capaz de superar as mudanças ocorridas na sociedade e consequentemente em si mesmo. A sociedade retratada por Nietzsche é uma sociedade hipócrita, baseada em preceitos moralistas que imobilizam o homem na sua busca de si. Por isso Deus está morto. Nós, membros dessa sociedade o matamos.
Mas se Deus está morto, porque estamos presos as correntes moralistas da religião? Porque o além ainda é mais atrativo que a própria vida? Que mecanismos controlam essa sociedade a fim de ocultar a razão de ser e existir? Sob qual égide está o pensamento desses?
Cultura. É a cultura que legitima o pensamento teocentrico e o trata como herança à posteridade. Sob a égide da cultura firma-se a religião.
No capítulo Sobre aqueles que acreditam no além (NIETSCHE, p.35) o autor faz uma reflexão sobre a necessidade da criação de um deus é inerente ao homem e como essa o aprisiona em conceitos divinos vividos por humanos. Segundo Nietsche o medo do sofrimento leva o homem a busca de resposta além vida, uma forma de não responder as questões que estão sob sua responsabilidade.
Sob a roupagem da religião homens inescrupulosos organizam a sociedade e as manipulam a seu bel prazer. Como em um grande teatro de marionetes a humanidade ensaia os atos que o levarão ao ápice da história: a redenção da alma. O corpo nada mais é que um recipiente ainda em desenvolvimento ao qual abriga uma alma imortal em busca incessante pela perfeição. Imperfeito, esse corpo deve ser domado pelas chibatas da moral. Fé e lealdade aos preceitos: eis a junção que pode libertar-nos do fim.
E assim o homem traça o seu caminho, programa o seu destino e a cada nova geração esses ensinamentos são retransmitidos a fim de garantir a permanência do grupo e da própria humanidade.
Essa permanência só é possível porque a cultura possui mecanismos que garantem a permanência desse ensino, e a educação é sua guardiã. Tais preceitos baseiam-se sempre em conceitos morais e que ganha tom de verdade absoluta quando associado a uma entidade nomeada pelos seus seguidores.
Jeová, Alá, Brama, Amana... Diversos nomes um conceito básico: deus, criador, juiz. Sob suas mãos está o controle da vida e da morte. O destino da humanidade repousa sobre seus ombros e aos homens, cabe obedecer seus preceitos, preceitos esses registrados em livros tão diversos quanto as divindades mas que possuem alto teor de autoridade a ponto de se serem considerados dignos de fé e prática.
A educação é a arma que a cultura utiliza para perpetuar esse círculo eterno. Ela é a guardiã das tradições e como tal cabe a ela ser a transmissora. Um exemplo disso encontram-se nas escolas Islâmicas. Nas escolas corânicas, baseia-se na idéia de que o papel do aluno é ouvir. Nesses estados onde a religião é a lei, nem mesmo a arte fica ilesa de suas restrições. No mundo muçulmano os desenhos produzidos são abstratos, pois só Deus é criador e ao tentar reproduzir o desenho de uma árvore, por exemplo, estariam equiparando ao criador. Por isso sua arte revela-se em traços abstratos ou em forma de mosaico.Segundo Tarik Ramadan, intelectual muçulmano em seu artigo escrito à página da educação , é necessário uma reforma no ensino islâmico caso não queiram se auto-excluir.
A ciência apela: deve-se banir a religião da escola, a instituição deve ser completamente laica.
Vista sempre como inimigo número um da igreja, a ciência esteve por alguns séculos silenciados. Com a ascensão do iluminismo e a busca de resposta pela razão o homem torna-se seu próprio deus colocando-se como centro do universo e de sua vida.
Se penso, logo existo e se existo EU SOU. Não é preciso um deus para dizer o que devo ou não fazer. Sozinho existo, sozinho faço. Mas será que a máxima é verdadeira? O homem conseguiu sobreviver com sua razão? O intelecto deu resposta as ânsias de sua alma infinita?
A filosofia parecia ser a resposta para suas dúvidas e apreensões e o individualismo crescente fez com que os valores culturais fossem mensurados a partir de sua utilidade para o progresso e não pelo seu significado único para cada sociedade.
A corrida pelo sucesso levou os homens a perda de sua identidade primeira: a identidade cultural. Cidadãos de um novo mundo, o deus agora baseava-se no capital e tudo era permitido em nome dele.
Se antes ter era um abismo que separava os homens do criador, agora a religião legitima o trabalho e não é mais proibido possuir. A demência da razão era coisa que aproximava de Deus e a dúvida era pecado. (NIETSCHE, p. 37)
Utilizando-se do discurso religioso, por muito tempo o homem tornou-se cativo dos preceitos morais ditados por alguns que segundo Zaratustra consideram semelhantes a Deus. (NIETSCHE, p. 37).
Nietsche, ao contrário do que muitos acreditam, não é um ateu blasfemo, mas um crítico a organização que utiliza o nome de uma divindade a fim de conseguir poder. A vontade de poder leva os homens há aprisionarem seus próprios semelhantes com as algemas do castigo eterno e é sobre eles que vem a crítica. Utilizando-se do que os homens consideram mais sagrados, esses não medem esforços para deturpar a verdade em busca de sua realização pessoal. Um reflexo da própria evolução do homem.
Se nos primórdios dos tempos a busca incessante do homem era encontrar respostas em como ser, com o passar dos tempos seu ideal passou a buscar subsídios para levá-lo a ascensão nessa vida. Mesmo com o olhar voltado para as coisas terrenas, a visão do além não foi de toda esquecida e isso graças a cultura que ainda prega e guarda esse preceito eterno.
De forma diferente talvez, o além agora pode ser conquistado. Não são mais necessários autos-flagelos o capital pode assegurá-lo. Hedonista, defensores do prazer instantâneo, correm contra o tempo; uma vida fast-food é o que procuram. Em cada praça, em cada vitrine, em cada rua, homens e mulheres, jovens e crianças, a humanidade caminha em passos rápidos como a vida se tornou rápida. Não há tempo para brincar, para conversar, para viver. Time is money diz a cultura vigente e deus legitima isso!
E o interessante é que nossas crianças são adestradas para esse show chamado vida. A programação começa com a demarcação do tempo. Há tempo para todas as coisas diz o Livro, e a escola também acredita nisso. Há tempo para brincar, há tempo para estudar, há tempo para falar.... Mais tempo ainda para silenciar. Silêncio, silêncio, silêncio. É a frase que repetimos todos os dias quando recitamos as máximas ditadas pelo sistema. Fragmentados, somos criaturas em busca de redenção, e quem poderá nos defender de nós mesmos? Uma vez enfermos, menosprezamos o corpo e a terra em busca dessa redenção e inventamos as coisas celestes e as gotas de sangue (...) Mas vejam só, uma vez as inventamos e agora somos nos mesmos que as destruímos! Até esses doces e lúgubres venenos os tomaram do corpo e da terra!
Se Deus está morto tudo me é permitido, não é assim? NÃO! Diz a cultura. Nada lhe é permitido, existem regras e essas devem ser seguidas a fim de mantermos a sobrevivência. Aqueles que não acreditam nisso, sejam lançados fora, para as catacumbas! Escórias da sociedade! Retire do nosso meio o câncer que contamina todo o corpo! Fim aos traidores do sistema!
E a humanidade caminha. Para onde? Não se sabe ao certo, só se sabe que caminham. Parafraseando Pessoa, caminhar é preciso, viver não é preciso. Eis a máxima pós-moderna.
Não somente o corpo mas a terra sente os efeitos decorrentes da morte de Deus. Parte da criação divina, a natureza era uma das maneiras de contato com o criador e para algumas religiões ela continha a essência do próprio deus. Mas, o “apego as coisas desse mundo” levaram alguns a não trata-la como parte da divindade e a sua morte também já a muito fora decretada. Caminhamos rumo ao fim, ao fim da humanidade, ao fim do universo.
Catástrofes, mortes, extinção. Palavras normais no vocabulário do homem pós-moderno e que já fazem parte dos livros didáticos. A nova ordem é reciclar a fim de manter a ordem em meio ao caos. Sempre houve muitos enfermos entre os que sonham e suspiram por Deus. Odeiam furiosamente aquele que busca o saber(...) Ensino aos homens uma nova vontade: querer esse caminho que o homem seguiu cegamente, considera-lo bom e não se afastar dele furtivamente como os enfermos e os moribundos!
Um vapor colorido diante dos olhos de um ser divinamente descontente parecia o mundo aos olhos de Zarastutra. Vivendo uma dialética eterna o criador desvia o olhar de si mesmo e cria o mundo. Um mundo que reflete a eterna contradição, sonho inebriante de seu imperfeito criador.
A cada nova geração surge o mundo e quantos mundos ainda teremos a chance de criar? Quantos “deuses” a educação ainda pregará? O que restará como preceitos basilares da sociedade em questão dignos de ser guardados e repassados?
Como em sonho ainda estamos a delirar na esperança de um mundo melhor menos injusto, menos discriminatório, menos hipócrita. E lançamos sobre o futuro essa esperança e nas mãos de quem? Das crianças. Pobres crianças! Sobre elas pesam o destino da família, o destino da cidade, o destino da nação, o destino da humanidade!
Tutor desse pequeno salvador, a educação assegura através do ensino a cartilha básica que “garantirá” o sucesso em sua batalha contra os inimigos do Estado. Aos pais fica a responsabilidade de nutrir, zelar e cuidar para que os ensinos administrados por esse aparelho legitimado sejam fixados. E a cultura? Essa será a eterna guardiã, que assegurará a continuidade desse projeto eterno que é o de uma sociedade organizada sob leis que garantirá o progresso e o bem estar de todos.porque não dizer de um. Novos deuses em construção, eis o que nos aguarda o futuro e deus? Esse morrerá, se for preciso.